Arte movimenta cerca de 14 mil milhões de euros todos os anos,em transacções sustentadas por um grupo restrito de coleccionadores que dominam um mercado global de 43 mil milhões de euros
Leia Mais...ELMANO MADAÍL, MADAIL@JN.PT
O que para muitos é arte contemporânea para outros não passa de mero "lixo". Foi o caso de uma zelosa empregada de limpeza do Centro de Artes da Figueira da Foz que varreu para o caixote do lixo, em Dezembro de 2004, parte de uma escultura.
Confundiu com entulho a obra do norte-americano Jimmie Durham, orçada em 25 mil euros, conhecida por "Os Cacos". Com propriedade: consistia nos "cacos" de um lavatório com um dos cantos partido. Quem poderá censurar a diligente senhora? Outro exemplo, mais dramático, da arte que se faz: em Agosto de 2007, Guillermo Habacuc Vargas, artista da Costa Rica, expôs numa galeria de Manágua um cão vadio faminto, preso por uma corda, que morreu de fome e sede durante a exposição. Ainda assim, foi escolhido para representar o país na Bienal Centro-Americana Honduras 2008. Porque é um artista. Neste contexto, como será possível definir a arte contemporânea?
"A arte é um processo cultural, articulando ao mesmo tempo a realidade de uma determinada época nas suas mais diversas instâncias: tanto no plano do real, como no plano simbólico - é disso que a arte trata, simbolizar o real e não copiá-lo - como no plano do imaginário, quer dizer, da representação que uma dada época faz de si mesma", começa por explicar Bernardo Pinto de Almeida. Aquele crítico e docente da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, sublinha que só a caução da História, em última análise, é que separa a arte do entulho. "Quando vemos as produções do século XVII, como temos o olhar distanciado da História, conseguimos perceber o seu interesse ou absurdo, mas não há o juízo da surpresa, quando, na sua própria época, pode ter surpreendido", diz.
E ilustra: "Por exemplo, Diego Velázquez (1599-1660) foi tão surpreendente no seu tempo que a obra "Las meninas" chegou a estar exposta nas portas do Escorial e o povo acorria para vê-la. Mas Gustave Courbet (1819-1877) e Édouard Manet (1832-1883) foram escandalosos à época, acusados de nem sequer saberem pintar; e, no entanto, hoje olhamos para eles com a ternura da História, percebendo como compreenderam bem a sua época. Portanto, há esta distância que a História impõe e que permite uma reavaliação. Assim, não me parece que caiba tudo na arte, mas só aquilo que o nosso imaginário e a nossa cultura conseguem conceber, e o que o tempo vier a legitimar".
O problema, realça, é não saber o que resistirá ao tempo, porque, muitas vezes, é do lado mais incompreensível que está o que depois melhor ilustrará o nosso tempo. Afinal, os maiores génios costumam ser os mais incompreendidos pela sua época" , afirma. Talvez se explique, assim, as polémicas que rodeiam as exposições de Hirst, o que não o impede de facturar como poucos, tendo mesmo dispensado a intermediação de um galerista, leiloando directamente, em Setembro de 2008, 223 peças na Sotheby's. E, em plena falência do gigante da finança Lehman Brothers, averbou cerca de 140 milhões de euros, soma jamais conseguida de uma só vez por qualquer artista. Estará ele destinado a perpetuar-se na História?
É possível. Segundo Pinto de Almeida, "porque participamos, no mesmo instante, de um tempo histórico e contemporâneo, há autores vivos que já escreveram a História recente", declara. Cingindo-se aos portugueses, indica nesse lote restrito Paula Rego ou Álvaro Lapa. "A um certo nível, a História já nos garantiu que figuram nela", garante.
Mas, para lá da imortalidade, a maioria dos artistas move-se também pelo desejo de ser comerciável. O caminho, todavia, não é fácil. Primeiro, o seu valor tem de ser reconhecido por aqueles que estabelecem as cotações. E os principais são os galeristas: "No mercado primário, isto é, da primeira vez que uma obra é posta à venda, quem define o valor dela são os galeristas em função do estatuto da galeria, da idade do artista e do seu currículo - os prémios recebidos, os lugares onde expôs, se foi comprado por coleccionadores de prestígio, privados ou corporativos", indica Luís Urbano Afonso, director do mestrado de Gestão e Mercados de Arte da Universidade de Lisboa. E, fundamental, será o reconhecimento pelos seus pares.
Um longo processo. Experimentado, por exemplo, por Baltazar Torres, artista plástico portuense que este ano colocou quatro obras na ARCO em duas galerias, uma austríaca e outra de Barcelona. E não lhe correu mal: "O último trabalho que vendi foi aqui, na ARCO, agora mesmo, por 18 mil euros", disse ao JN o artista de 47 anos, recordando os primórdios: "Sou pintor desde 1988, ainda era aluno na Faculdade de Belas Artes do Porto, mas expus numa galeria muito exigente, a Galeria Módulo, e vendi o meu primeiro quadro por 80 contos (cerca de 400 euros)".
Baltazar Torres tem contado com a benevolência da crítica especializada, mas isso talvez não seja o mais importante. Para Afonso, "no contexto do mercado, os críticos têm cada vez menos relevância", como se prova pelo êxito comercial de Hirst e do escultor Jeff Koons, por exemplo. Porque no mercado secundário - em que se transaccionam nomesjá firmados - quem conta são os galeristas e os coleccionadores. Um universo restrito: "Há 20 ou 30 galerias influentes no Mundo, e quatro ou cinco no âmbito nacional", contabiliza o docente da Universidade de Lisboa.
O grupo dos coleccionadores é igualmente diminuto, e são eles que acabam por sustentar um movimento anual de cerca de 14 mil milhões de euros: "São fieis compradores, pessoas e instituições que mantêm este mercado vivo - nesse grupo não entram especuladores nem novos-ricos", garante Afonso. Admite, porém, que há neófitos, fruto das fortunas colossais construídas nos países emergentes: "Os EUA continuam a dominar (representam cerca de 42% das obras transaccionadas em 2008), mas também há novos compradores na China (responsável por 7,3% das transacções de arte, tendo já ultrapassado a França), na Rússia, na Georgia e na Ucrânia", diz. "Também há grandes compradores na América Latina, e julga-se que foi um mexicano, David Martinez, a comprar um Pollock por 108 milhões de euros em 2006".
O grande volume de dinheiro trocado por arte é proporcional aos poucos eleitos que as compram - de que constam apenas três portugueses, Joe Berardo, João Rendeiro e João Pereira Coutinho: "Por ano, não são vendidas, em leilão, mais de mil peças com preços superiores a um milhão de euros", diz.
Com efeito, não obstante os números impressionantes, a maior parte das obras leiloadas no mercado internacional tem um valor médio inferior a 18 mil euros. Em Portugal, será de 4000 euros, com a peça mais cara de sempre a ser adquirida por Pereira Coutinho, em Março de 2004: a tela "Serão", de Columbano Bordalo Pinheiro, custou-lhe 310 mil euros. Estava-se em plena euforia do mercado da arte, que conheceu uma valorização de 95% entre 2002 e 2006.
Os tempos mudaram, entretanto. E, se é certo que, "normalmente, há um atraso de um ano até a crise noutros sectores chegar ao mercado de arte, desta vez, se olharmos apenas para 2008, as coisas foram mais próximas, com o impacto a sentir-se a partir de Setembro, Outubro", afirma Luís Urbano Afonso. Não surpreende, por isso, que a directora da ARCO, Lourdes Fernández, tenha admitido ao El País que, este ano, galeristas e artistas tenham de "trabalhar o dobro para conseguir metade dos resultados de antes".
artigo publicado no Jornal de Notícias de 15-02-2009
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